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Genoma Humano. Analfabetismo científico na mídia

Ulisses Capozoli*

      Ao contrário do que freqüentemente ocorre em economia e política, a pesquisacientífica raramente rende uma manchete de jornal. Quando isso acontece, é um sinalevidente de que as coisas do mundo já não são as mesmas de antes. Foi o que ocorreu naterça-feira [13/2/01], quando a imprensa tratou, obrigatoriamente, do genoma humano cominformações apresentadas pelo consórcio internacional de pesquisas, liderado pelosEstados Unidos e pela empresa privada Celera Genomics, do cientista-empresárionorte-americano Greg Venters.
      Ao menos os jornais reproduziram, em comum, a principalinformação dos geneticistas: publicaram que os genes humanos (unidade responsável pelascaracterísticas hereditárias de um organismo) são em número bem menor (entre 30 e 50mil) do que o anteriormente previsto (100 a 150 mil).
      A partir daí, os enfoques de alguns dos principais jornais foi bem diferente. A Folhade S.Paulo, sem dúvida, fez o melhor cobertura. Já na véspera, dedicou trêspáginas ao assunto, anunciando a publicação dos trabalhos (o material do consórciointernacional saiu na revista inglesa Nature e o da Celera, na norte-americana Science).O Estado de S.Paulo chegou atrasado e, para tentar compensar a vantagem de vésperada Folha, abriu (no dia 14) duas páginas com chamada no alto da primeira página,acima do espaço que tradicionalmente reserva para suas manchetes otimistas de economia oupolítica.
      O Correio Braziliense também deu duas páginas, enquanto o Jornal do Brasileconomizou espaço com apenas uma. O JB, que recentemente voltou à Idade Média,ao interpretar acidentes no Rio (incêndio no auditório da Globo, problemas no estádiodo Vasco e ferimentos por fogos de artifício no final do ano) como resultado deconjunções astrais desfavoráveis à cidade, fez uma cobertura pífia. A começar pelamanchete de página: "Racismo não tem base genética". Por que deveria ter? Seracistas recorrem a raciocínio deste tipo, um jornal como o JB não deveria seguiro mesmo caminho – ainda que, pretensamente, para fazer uma refutação.
      Numa linha politicamente correta, o JB cita um pesquisador, identificado comosendo do Instituto Max Planck, na Alemanha, para dizer que "no fundo somos todosafricanos, já residimos na África". Pode ser a opinião do citado Svante Pääbo,mas não da comunidade internacional de antropólogos. Há dúvidas ainda nãoesclarecidas se o homem surgiu na África e de lá espalhou-se para o resto do planeta, ouse apareceu em mais de uma região e o que aconteceu em seguida pode ter sido umainteração entre diferentes populações.
      O Jornal do Brasil ainda invocou Gobineau (Joseph-Arthur 1816-1882, condeGobineau) diplomata e etnólogo francês cujas teorias exóticas sustentaram teoriasracistas no Ocidente. O jornalão fez graça com "o Y da evolução", fugindo,na realidade, do "X da questão".
      O Correio Braziliense ficou entre uma projeção vaga – "cura demuitos males daqui a três ou quatro décadas" – e um ufanismo bobo –"show da pesquisa verde-amarela" –, neste caso referindo-se àscontribuições do Brasil. O Brasil contribuiu com informações, mas não foi citado comofonte no trabalho do consórcio internacional. Houve quem se indignasse com essa omissão.Mas quem conhece as regras do mundo acadêmico sabe que não há nada de novo aí.

      Cozidão mal-temperado

      A big science, investigação científica conduzida por equipes, demandandoaltas quantias em dinheiro e sofisticado equipamento, não fica nada a dever ao submundodo futebol brasileiro. Aí há uma sangrenta guerra pelo poder. Um exemplo recenteenvolveu Robert Gallo, nos Estados Unidos, e Luc Montaigner, na França, sobre aidentificação do vírus da Aids. Na prática, Gallo roubou a descoberta do seu colegafrancês. Mas esse é apenas um, entre milhares de outros casos da história.
      Talvez a primeira experiência de big science tenha sido feita pelo astrônomodinamarquês Tycho Brahe (1546-1601), em seu observatório de Uraniburgo. Tycho só passouos dados a Kepler bem próximo de sua morte. Com isso, Kepler desmontou a teoria dasórbitas circulares estabelecidas por Aristóteles e abriu espaço para Galileu e Newton.Tycho Brahe foi um pequeno tirano para com seus empregados e colegas, até que a morte deseu protetor fez com que ele procurasse abrigo em Praga, onde Kepler o encontrou.
      A falta de suplementos de ciência nos jornais brasileiros (se há cadernos especiaisde informática, televisão, agricultura etc., por que não existem cadernos de ciência?)faz com que repórteres e editores, na maioria dos casos, ainda se ressintam de umaformação adequada na área. São, em muitos casos, e lamentavelmente, analfabetoscientíficos. E transferem para os leitores suas próprias confusões e equívocos.
      Prova dessa situação é o material publicado pelo Estado de S.Paulo no domingo[18/2/01]. Para tentar recuperar a vantagem aberta pela Folha durante a semana, o Estadãosaiu com um "cozidão" de duas páginas no fim-de-semana. Na A18, sob o títulode "O fim do começo", lê-se uma série de mal-entendidos que mais confundemque esclarecem o leitor. Antes da terça-feira, fazendo eco a uma interpretaçãoreducionista da ciência (uma das variantes do analfabetismo científico dentro dasuniversidades, para quem possa pensar que esse problema só se manifesta entre leigos), amaior parte da imprensa apresentava a visão de que a genética é responsável por quasetudo que somos e fazemos. Pouca gente lê autores como Ruppert Sheldrake, filósofo ebioquímico inglês, que, com apoio em Aristóteles, há muito demonstrou que os genesnão podem ser o que se dizia que eram.
      Pois bem. De terça-feira, 13, para cá, com base especialmente no reduzido número degenes encontrados pelos pesquisadores, repórteres e editores apressadamente começaram aescrever o contrário. Certamente que é prematuro qualquer afirmação taxativa sobre oconhecimento genético no tratamento de doenças hereditárias, como insistiu o Estadãono domingo, dia 18. No começo deste século, Willliam Thomson, Lord Kelvin, um brilhantefísico e inventor inglês, disse que na física não havia mais nada para ser conhecido.Lord Kelvin, insuspeito por sua brilhante reputação, disse isso um pouco antes doaparecimento da relatividade e da mecânica quântica.
      E Lord Kelvin não foi o único a cometer esse mesmo erro ao longo do tempo. O velho esábio Aristóteles também caiu nessa armadilha ao anunciar o que o filósofo espanholJosé Ortega y Gasset chamou, em A rebelião das massas, de "plenitudedos tempos". O erro aqui, segundo Ortega y Gasset, é considerarmos que, em nossotempo, atingimos uma plenitude que os povos que nos antecederam nem puderam sonhar.
      O problema é que o mundo, como já estabeleceu Heráclito (nenhum homem se banha nomesmo rio ou sobe a mesma montanha duas vezes), nunca é o mesmo. Isso significa que omundo dos gregos era diferente do nosso. Podemos nos referir a ele e supor como os gregospensavam. Mas não podemos, rigorosamente, recuperar o sentimento de mundo dos gregos.Para isso deveríamos ser um deles e viver naquele tempo. A razão disso é que o quesabemos do passado resulta de uma interpretação feita à luz do presente. Assim,"contaminamos" o passado.
      No referido "cozidão" de domingo do Estado de S.Paulo é precisoexcluir o artigo despretensioso escrito pelo geneticista mineiro Sérgio Danilo Pena.Cuidadoso, Pena aponta cenários promissores trazidos pelos novos conhecimentos nagenética. Mas sem ser definitivo.

      Como podiam??

      A visão definitiva é algo que não combina com ciência. Ao menos com ciênciamoderna. Na Escolástica, a tentativa de unir fé e razão poderia ser plausível – erealmente o foi durante muito tempo. O problema, aqui, como o Jornal do Brasilanunciou já na semana anterior, são resquícios da Idade Média na forma de se pensar omundo.
      O material do Estadão se trai pela titulação. Na mesma A18, uma das matériastraz o título "Por que tudo é tão complicado?". Uma resposta possívelpoderia ser: talvez porque os autores dos textos não tenham muita idéia do que estãofalando.
      O que é simples em ciência? Uma pedra, ou um tampinha metálica de refrigerante, éalgo simples? Claro que não. Atrás de si, a pedra e a tampinha metálica estãorelacionadas à forma como a matéria se condensou logo após a explosão primordial, seé que a teoria do Big Bang realmente traduz tudo o que aconteceu, em termos de nascimentoe evolução do Universo. O problema é que os redatores de nossas publicações,aparentemente, nem de longe suspeitam disso. Nesse sentido, denunciam uma outrainfluência deletéria no pensamento intelectual brasileiro: o positivismo reducionista deAuguste Comte. O assunto é quilométrico e não há como abordá-lo aqui.
      Mesmo a revista Veja, semanário que teoricamente teria alguma vantagem de temposobre as publicações diárias, não escapou do besteirol. Na página 58, uma das quatroque dedicou ao assunto, escreve: "mas os genes não informam que a cabeça tem queficar em cima dos ombros, ou que os braços devem sair um de cada lado do tronco..."
      Os problemas não só do feto, mas de processos aparentemente muito mais simples, comoo da cicatrização, podem ser conhecidos em Shaldrake. Mas daí até a simplificação deVeja há uma distância astronômica. Ou talvez esteja havendo, realmente, umesquartejamento intelectual pouco visível aos espíritos mais complacentes e isso estejarefletido, em boa parte, no que se escreveu sobre genética na semana de 11 a 17 defevereiro.
      Em resumo, a propósito dos acontecimentos de terça-feira, 13, pode-se pensar oseguinte: a determinação genética não é taxativa, como muitos imaginavam até agora.Mas muitos não significam todos. Uma boa parte de cientistas e filósofos da ciênciasempre discordou dessa visão reducionista. Exemplo disso: o que uma árvore viva tem queuma árvore morta não tem? Segundo o velho Aristóteles, tem energia vital. O vitalismofoi abandonado pela ciência moderna (pós-Bacon) como sinônimo de ignorância. Apropósito, os cartesianos acusaram Newton de "bruxaria" por sua lei dagravitação universal. Disseram que Newton não sabia o que era a gravitação. E nãosabemos disso até hoje.
      Newton, com sua superioridade imbatível, disse que realmente não sabia o que eragravitação e não estava preocupado com isso. Mas a lei que a traduzia, alfinetou,estava contida no seu Principia.
      Talvez em duas décadas seja interessante ler o que, naquela semana de fevereiro de2001, a imprensa brasileira publicou sobre o genoma humano. É possível que até a futuragarotada da rede básica de ensino possa perguntar a seus professores (eventualmentedescendentes de HAL, o computador de 2001, Uma Odisséia no Espaço, para quem nãolê ficção científica e não viu a obra-prima de Kubrick): como é que, no começo doséculo 21, os jornalistas podiam escrever assim?

OBS: Artigo publicado originalmente no site do Observatório da Imprensa, do Labjor/Unicamp.

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*Ulisses Capozoli é jornalista especializado em divulgação científica, historiador científico e presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Científico (ABJC).

 
 
 
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